Os Corvos e a Rosa dos ventos

A DRCAlg assinala o Dia de São Vicente, 22 de janeiro, com a partilha de um conto da autoria
de Maria Raquel Roxo, escrito no âmbito da Marca Património Europeu.

Os corvos – aves negras que simbolizam a vida e a morte, a luz e a escuridão, mas também a sabedoria, a astúcia, a renovação e a metamorfose. Diz-se também que são aves de vocação apocalíptica e que têm o poder de retirar e de conceder a visão. Desde há muito estão associadas ao imaginário deste lugar, o Promontório de Sagres.

Este é um diálogo entre dois corvos, um corvinho ainda novo e uma anciã fêmea. Estão nas muralhas da Fortaleza de Sagres e olham para a praça de armas, para a Rosa dos ventos, e para as pessoas que por ali deambulam, apesar do vento forte que as impede de avançar…

(Corvinho) Nunca ninguém lá entra!! Ali, naquele círculo enorme! Tão grande, quase como o Sol. Deve ser um sol sagrado…

(Anciã)  O que tu chamas de sol sagrado, os homens chamam de rosa dos ventos.

(Corvinho) Rosa dos ventos?!…. pois, aqui está sempre uma “bezaranha”[1], que nos dificulta o voo. Estranho… Os humanos estão aí por todo o lado, até perto das arribas, e junto às furnas, mas ali dentro nunca ninguém se atreve a entrar…aproximam-se, mas ficam sempre do lado de fora do círculo. Parece ser um círculo sagrado.

(Anciã)  Os homens dizem que esta rosa aponta o caminho para vários pontos do mundo, ou que indica os vários tempos do dia, mas, não sabem muito bem o que é… É um dos enigmas de Sagres. Provavelmente os humanos nunca compreenderão a sua razão de existir. O encanto desta Rosa dos ventos reside mesmo no seu mistério! Mas, sabes como são os humanos, tudo querem compreender…

(Silêncio…. só se ouve o marulhar e a nortada forte …).

(Anciã) Ouve… Em tempos antigos, ergueram-se neste lugar santuários a Saturno, a Melkart. Só os deuses vinham pernoitar. Os homens e os seus medos não… diziam que era aqui o Fim do Mundo. Hoje, os homens já não acreditam em monstros marinhos ou em deuses, por isso muitos são os que querem visitar esta finisterra. Eles vêm de lugares longínquos, falam diferentes línguas e querem conhecer o sítio onde começa a Europa e onde tudo começou, o Promontório de Sagres.

(Corvinho) Mas o que aqui começou? Nós já cá estávamos antes!

(Anciã) Sim, esta é a nossa terra, até bem antes de nos tornarmos os protetores de São Vicente, e de fazermos anunciar todos os peregrinos – cristãos, moçárabes ou muçulmanos – que chegavam à Igreja do Corvo, que existia bem aqui perto. Mas os homens só gostam de olhar para as suas façanhas e dizem que foi a partir daqui que Dom Henrique planeou as viagens para sul, para onde o vento nos leva. Os seus homens foram os primeiros europeus a passar o cabo Bojador.

(Corvinho) Grande coisa… muitas aves já viajavam para sul.

(Anciã) Os homens lá ultrapassaram os seus medos, conseguiram cruzar o mar, e ficaram a conhecer outras terras, outras gentes e outras riquezas, que do lado de cá não existiam. As essas viagens chamam-lhes de “descobrimentos”, mas agora esse tem sido um nome contestado, pois afinal os de lá também descobriram os de cá. Enfim, questões que devem fazer os homens refletir, tal como esta Rosa dos ventos mágica, que continua a seduzi-los e a fazê-los questionar…

(Reflexão… as aves continuam a observar os transeuntes em redor do círculo).

(Corvinho) Olha… os humanos olham para a rosa dos ventos, mas nada conseguem ver… Estão cegos, à força de tanto querer compreender, não conseguem ver…

(Anciã) Muito bem, meu pequeno! diz-me mais. O que achas tu que eles não veem? O brilho do sol os terá cegado?

(Corvinho) Que este círculo representa todo o planeta, para onde a humanidade converge. Andam numa busca constante por riquezas e conhecimentos, mas ainda não perceberam que a maior riqueza é aquela que sempre cá esteve, é esta imensa paisagem natural, onde cabem todos os seres do Mar e da Terra. E que o maior conhecimento de todos é o que está ao centro da Rosa, que simboliza a convergência humana, e não os homens “de lá” e os “de cá”. Aí está a sua sacralidade!

(Anciã) Vejo que estás a crescer depressa! Talvez tu, pequeno corvo, um dia possas conceder aos homens essa tua visão astuta….

 

(O Céu vermelho… O Grande astro-rei declina sobre o Mar……ouvem-se aplausos ao longe).

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[1] Ventania